Comportamento



A luta do ser humano
Uma lição de vida

“Viagem Solitária. Memórias de um transexual trinta anos depois”. Esse é o título do livro que João W.Nery lançou recentemente em que relata a sua vida. Aos 61 anos, João fala tudo, sem esquecer nenhum detalhe. Da vida como Joana até os dias de hoje. É um livro interessante, que merece ser lido com olhos bem atentos, para conhecermos a história de luta de João para encontrar sua verdadeira natureza. Conversamos com o autor num bom bate papo que acabou virando notícia e uma lição de vida.

O início
Desde os quatro anos me sentia como menino. Todas às vezes que me tratavam no feminino eu corrigia mentalmente. Era como se o mundo estivesse errado. A minha primeira paixão foi aos sete anos de idade, claro que foi por uma menina. Um dia me falaram que aos 12 anos eu ia virar ‘mocinha’. Entrei na adolescência aos 14 anos e os seios começaram a crescer. Era muito ingênuo. Não sabia nem que existia homossexualismo. Resolvi fazer esportes para melhorar o físico e fui campeã brasileira em saltos ornamentais.

Convivência
Venho de uma família classe média com três irmãs e sempre me apaixonava pelas meninas. Eu era uma figura estranha. Na rua, desde pequeno, me chamavam de “Mario Homem”. Queria morrer. Passei a brincar no quintal da minha casa para me proteger.

Darcy Ribeiro
Com o golpe militar, meu pai é cassado e se exila no Uruguai. Passo as férias lá e conheço Darcy Ribeiro, que acabou sendo forte na minha vida. Ela passa a ser o meu mentor intelectual e sempre dizia: “Você só vence com dignidade por duas maneiras. Uma sendo rica e calando a boca com o que tem ou se intelectualizando, pois vai ter argumento para se defender. Tombei para o segundo. Darcy acabou me “adotando” como filha e me ensinou a ler poesia e a perder o medo das palavras. Eu não dizia nem palavrão. Ele abriu os meus horizontes.

Namoros
Quando completei 16 anos, minhas irmãs me arranjaram um namorado. Me deram roupas, batom, sapatos...A família vibrou. Me sentia uma travesti, mas diante de tantos aplausos resolvi experimentar. Namorei por um mês até que um dia ele me deu um beijo e tive nojo. Morreu naquele momento o namorado. Depois veio um outro que era mais suave. Não exigia nenhuma vaidade. Quando vi esse homem despido fiquei maravilhado com que estava vendo. Ele queria que eu fosse mãe, mas eu queria ser o pai. Nunca transei com homem. Aos 19 anos, entrei na Faculdade Nacional de Psicologia e encontrei a minha transa e amor com uma mulher; não existia papel definido na relação, até porque ela era também virgem.

O passo masculino
A moda na década de 70 era maravilhosa. As roupas eram unissex. Um dia, sai sem a bolsa canoa que usava e acabei passando como homem. Conheci outra pessoa e fomos morar juntos. Assumi a minha masculinidade publicamente para quem não me conhecia. Fui ser chofer de táxi como homem e foi uma experiência enriquecedora.

Conflitos
Vivia um conflito com meu corpo. Ia em algumas boates como “Alfredão”, que era só para mulheres. Quando ia ao “Sótão”, quem me paquerava eram os gays e nãos as mulheres. Eu era homem em público e mulher na faculdade. Aos 23 anos me tornei professora universitária. Era uma verdadeira doideira. Eu era uma figura andrógina. Tinha quer ser uma professora fantástica para transcender o estigma. Para ter uma ideia, não podia nem entrar no banheiro de meninas. Tinha também consultório. Meus pais ignoravam a minha mulher, mas frequentavam a minha casa. Termino o casamento e vou para Europa e acabo descobrindo a palavra “transsexualismo”.

Mudança
Acabei achando o rótulo. Precisava de um para poder me entender. Descobri através de uma amiga que existia uma equipe pioneira no Hospital Moncorvo Filho. Sigo para lá e me submeto a todos os testes, exames e terapias. Tudo deu normal. Não era hermafrodita. Faço terapia com um psiquiatra que diz não poder dar o laudo porque iria perder o diploma. Acabei indo a outro em São Paulo que me concede. Antes de me submeter às cirurgias, pedi demissão na faculdade, fechei o consultório. A primeira etapa foi a retirada das mamas e depois histerectomia. Aos 27 anos, entro na menopausa e começo a tomar hormônios. A próxima etapa foi estacionada devido o médico responsável ser condenado por outra cirurgia feita. As cirurgias são experimentais. Não coloquei pênis. Na verdade, não preciso de um pênis para ser homem. Ninguém precisa.

Aceitação
A família ficou em crise no início. Meu pai ficou sem falar, mas depois tudo mudou. Me dou super bem com todos, sou respeitado sem forçar barra. Estou casado há 15 anos, tenho um filho que tem 24 anos que é sensível sem ser afeminado. Ele é muito amigo. Eu o eduquei com todas as coisas boas do mundo feminino.

Identidade
Depois da operação, perdi minha identidade. Deixei de ser psicólogo. Perdi minha profissão e não podia entrar na justiça. Estou falando de um fato que ocorreu há 30 anos. Fui a um cartório com uma testemunha e consegui trocar o meu nome. Como poderia sobreviver com documento de mulher com cara de homem. Sobrevivi como pedreiro, artesão, vendedor, massagista de shiatsu, cortador de confecção, construtor entre outras serviços. Fiz supletivo e quando parti para o segundo grau acabei ficando por uma questão. Fiquei revoltado e parei com tudo. Minha família me ajudou e ainda me ajuda. Sou uma cobaia da ciência. Não existe tempo hábil e estatística para uma mulher aos 27 anos entrar na menopausa. Ao invés de tomar estrogênio, passei a tomar testosterona. O que vai dar? Começa um processo de artrose sistêmica na coluna, nas pernas. Tive que colocar placa de Titânio na coluna e botei duas próteses total no quadril. Se não fizesse essas intervenções cirúrgicas estaria agora numa cadeira de rodas. Nenhum reumatologista pode garantir que a artrose pode ser derivada da testosterona.

Cabeça
Sou um homem tranquilo e muito feliz, embora não tenha terminado a cirurgia. Sempre fui um homem que sabia que não seria um homem normal, com ou sem pênis. Tenho uma vida normal. Só não posso me sentir mal na rua e ter que tirar a roupa. O transexual não tem espaço para ele.

O que não fariaNão choro o leite derramado. Vivo o real. Eu sou a Joana. Ela está aqui comigo. Sempre me amei e sempre soube o que queria. Nunca me trai.  

Por José Carlos Silva




2 comentários:

  1. Tocante essa entrevista. O livro imagino que seja bárbaro! Deu vontade de ler. Meu niver é dia 09 próximo, aceito o presente de quem vier.
    Parabéns à Revista por esta postagem!

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  2. engraçado ler esta matéria justamente hoje, pois ontem assisti vários filmes com temática glbt, um deles foi "CIRCUIT", onde todos tentam se encontrar de alguma forma, vejo em vc isso... e deve ter sido uma barra, me vejo um pouco assim, como se estivesse na metade do caminho, sou um gay masculino, e me monto de drag quando quero, as pessoas curtem, mas estes "papeis" de masculino e feminino ainda são um tabu, para todos nós...hoje em dia estou mudando de profissão após atuar por 10 anos como ADM, agora me inclino para área de cabelos e maquiagens, que por muito tempo evitei, pelo estigma da profissão, coragem de mudar nisso tiro meu chapéu e lhe aplaudo de pé! Parabéns muita luz em seu caminho

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